O conceito de “Digital” hoje em dia se aplica as mais diversas indústrias, podendo ser entendido como uma oposição ao “tradicional” ou “físico” e “analógico”, dizendo respeito a priorizar (em alguns casos, de forma exclusiva) as interações entre clientes e empresas por meios e canais eletrônicos em detrimento ao uso de canais físicos., dentre outras características, como abordado no conteúdo anterior.
A fim de tangibilizar esse conceito, e usando-se como exemplo claro de distinção entre uma empresa “digital” versus uma “tradicional”, pode-se apontar o caso mais do que conhecido e analisado da Netflix, a qual provê de forma digital o serviço de disponibilização de mídias de entretenimento (via streaming por internet em dispositivos como televisores, computadores ou smartphones, a partir da demanda direta e imediata comandada pelos clientes).
Como contrapartida “tradicional” têm-se a Blockbuster, a qual também provia o mesmo serviço final, ou seja, a disponibilização de mídias de entretenimento, porém de forma tradicional, via lojas físicas para as quais os clientes necessitavam se deslocar, contar com a disponibilidade de mídias físicas (fitas VHS ou DVDs) na loja em que foram encarar filas para ser atendido, voltar para casa e finalmente poder assistir ao filme escolhido).
A maior comodidade e satisfação dos clientes e custo operacional mais baixo fizeram da Netflix a vencedora inconteste na comparação dos dois modelos de negócios, demonstrando que de forma geral, competidores digitais tendem a levar vantagem sobre seus pares tradicionais.
Apenas como curiosidade, esse exemplo, se mostra ainda mais dramático quando se considera que a Blockbuster teve a oportunidade de adquirir a Netflix no início dos anos 2000 por cerca de 50 milhões de dólares, mas desperdiçou essa oportunidade, tendo falido pouco mais de uma década depois.
Mais irônico ainda é pensar que hoje a Netflix não só continua ativa como é a referência nesse segmento, tendo alcançado uma valoração extraordinária, na casa da centena de bilhões de dólares (alguns milhares de vezes o valor ofertado à época para a Blockbuster).
No exemplo acima, o serviço ou produto final pôde ser efetivamente disponibilizado aos clientes de forma digital (no caso via internet), quando a tecnologia e infraestrutura se mostraram prontas e disseminadas de forma ampla e abrangente no mercado consumidor (acesso à internet rápida em milhões de lares) e também por conta de se tratar de um serviço eminentemente digital (mídias de entretenimento).
Já no caso de outras indústrias, usando como exemplo a de serviços financeiros, isso (ainda) não se mostra 100% possível, dado que legalmente ainda existe a figura do dinheiro na forma de papel moeda físico, o qual evidentemente necessita de canais físicos para ser disponibilizado (sejam agências e caixas, sejam pontos de autoatendimento).
Entretanto, novas tecnologias e hábitos de consumo têm minimizado cada vez mais a necessidade efetiva de circulação do dinheiro na forma física, sendo o mesmo cada vez mais circulado apenas em meios digitais.
Nesse sentido, os bancos tradicionais têm abraçado a evolução tecnológica vista nas últimas décadas, pois reconheceram as vantagens e necessidades de se tratar o dinheiro como algo primordialmente digital.
O têm feito de forma gradual, em grande parte, sem grandes transformações ou revoluções em seus processos e na forma como interagem com seus clientes, sendo assim, pode-se dizer que são empresas que mantêm métodos tradicionais, tendo apenas embarcado o uso de ferramentas tecnológicas mais avançadas, mas sem, contudo, adotar uma abordagem da era digital.
Por outro lado, ainda dentro do exemplo da indústria financeira, um conjunto cada maior de novas empresas, usualmente chamadas de fintechs (junção das palavras finance e technology, ou seja, finanças e tecnologia em português), têm mirado no mesmo mercado consumidor, porém sob uma ótica diversa, sem o legado e as amarras burocráticas desenvolvidas ao longo de séculos ou décadas dos bancos tradicionais, se inspirando na agilidade e abordagem de outras empresas de sucesso nascidas na atual era digital.
Hoje contam-se alguns milhares startups e fintech ativas em todo o globo e estas empresas são vistas como as que irão fazer ou que já estão fazendo a disrupção da indústria bancária tradicional, a levando para outro patamar na satisfação da experiência dos clientes e no nível dos preços dos serviços ofertados, tal e qual verificou-se em outras indústrias, como a exemplificada anteriormente no caso Netflix versus Blockbuster.
Em adição a esse caso, já é comum ouvirmos outras referências como na indústria da hotelaria, onde o AirBnB trouxe novos players (os próprios donos de imóveis) e passou a oferecer uma nova experiência de viagem, ou na indústria da música, onde o Spotify transformou o modo de consumo de música (online e offline), e até mesmo na indústria do transporte, a ponto de o Uber ter virado um verbo sinônimo de disrupção, “uberizar”.
A prática e a frieza dos números comprovam essa afirmação, dado que nos últimos anos, as startups e fintechs receberam dezenas de bilhões de dólares em investimentos.
A concorrência com as empresas digitais pode ser encarada tanto a partir de uma ótica de vantagem e segurança para as empresas tradicionais, quanto de ameaça de disrupção dessa mesma indústria.
Entre aqueles que apontam a estabilidade das empresas tradicionais, geralmente pode-se extrair três principais pontos de sustentação:
Tamanho e abrangência do mercado
· O raio de alcance de parte das empresas digitais (no seu início) é pequeno quando comparado ao mercado e ao tamanho e abrangência das empresas tradicionais.
· Por exemplo, enquanto alguns bancos digitais possuem carteiras de clientes na ordem de milhares ou poucos milhões, grandes bancos tradicionais globais atendem carteiras na ordem de dezenas ou centenas de milhões de clientes.
Ambiente regulatório global e local
· As startups só podem ser ágeis e atuar com baixos custos operacionais enquanto não estão sujeitas à regulação do mercado.
· A partir do momento em que crescerem, fatalmente serão enquadradas no ambiente regulatório ao qual as grandes empresas já atuam e isto inevitavelmente influenciará a sua agilidade e capacidade de inovação, além de alterar a sua estrutura de custos.
Credibilidade e reconhecimento da marca
· As empresas digitais, em seu início, são bem-sucedidas enquanto atuam em nichos específicos.
· No momento em que passarem a se expandir para outros segmentos, enfrentarão uma barreira de credibilidade de marca, onde entende-se que os grandes bancos preservam uma vantagem na percepção de solidez.
Por sua vez, os que apontam o risco de disrupção por parte das empresas de cunho digital na indústria tradicional, sustentam sua posição baseada em outros três motivadores principais:
Estrutura de custos mais enxuta:
· A capacidade de oferecer produtos e serviços a custos mais baixos por parte das empresas digitais é decorrente dos seguintes fatores:
· Uso de cloud computing, o que permite transformar CAPEX em OPEX, conferindo maior agilidade à operação, promovendo ao mesmo tempo um maior estímulo à inovação, já que eventuais falhas no desenvolvimento tendem a ter menor impacto financeiro.
· Estruturas organizacionais mais enxutas, com menos níveis hierárquicos e poucas pessoas, seguindo o conceito de lean startup.
· Modelos de remuneração baseados em stock options, com baixos valores fixos, especialmente nos primeiros anos da existência das empresas.
· Custo de capital baixo, seja em função da infraestrutura na nuvem ou do fato de estar à margem ao ambiente regulatório.
· Ambiente regulatório: normalmente as startups de fintech criam seus modelos de negócio no limiar mínimo necessário da regulação existente em seus mercados, minimizando os custos no cumprimento das mesmas.
Uso intensivo de dados:
· O uso de dados permite às startups personalizar a experiência do usuário, exibindo informações mais relevantes para aquele contexto, além de fazer recomendações coerentes com o seu histórico e suas necessidades atuais em tempo real, aumentando o grau de conversão de vendas.
· Sua cultura digital disruptiva e sem as amarras do legado tradicional também as levaram a mudar a forma como pensam e executam processos tradicionais, como por exemplo análise de crédito e risco, aproveitando-se do uso de redes sociais, geolocalização e comportamentos de navegação dos clientes como fonte de informação para suas análises.
Experiência do usuário disruptiva:
· O mundo digital mudou o cenário de competição, ou seja, seguindo nos exemplos de serviços financeiros, os bancos hoje não competem apenas com os outros bancos, mas sim com players de outros segmentos, como Apple, Samsung, Facebook, WhatsApp e Google, por exemplo. Dessa forma, as experiências dos usuários precisam ser similares e para isso, os processos precisam ser revistos.
· Quando se fala de experiência, não se refere apenas ao que está na tela do usuário, mas à jornada que o usuário percorre do início ao fim da sua interação com as instituições financeiras.
· Utilizando-se como exemplo o processo inicial de interação com o cliente, ou seja, o cadastramento do mesmo, este processo deve ser simples, rápido e intuitivo, o que significa dizer que a operação no back-office do banco precisa ser, igualmente, a mais automatizada possível, de forma que o usuário possa receber em tempo real notificações sobre eventuais pendências, por exemplo, ao invés de ter de esperar horas ou mesmo dias até receber um e-mail ou uma ligação informando da sua pendência.
· Este é um grande desafio, especialmente para os bancos brasileiros, que ainda têm boa parte de seus processos orientados para as agências físicas e que, diferentemente das suas contrapartes digitais, ainda operam primordialmente sob um paradigma físico, como, por exemplo, considerando que uma assinatura física em uma folha de papel acompanhado de uma carteira de identidade e comprovante de endereço é sinônimo e requisito básico de segurança.
· Empresas digitais, por sua vez, atuam no outro extremo, sob um paradigma em que uma assinatura digital, a qual pode ser associada a redes sociais e perfis de navegação, acrescentando em menos de um segundo dezenas de informações sobre aquele usuário, pode oferecer mais segurança e certezas sobre o mesmo cliente.
No Brasil, empresas como XP, Nubank, Guia Bolso, Órama, Conta Azul, entre outras, já demonstram a capacidade das startups de oferecer produtos e serviços aderentes ao comportamento do novo consumidor digital, o qual está conectado o tempo todo em busca de uma experiência compatível com o seu universo e com outros serviços digitais aos quais esses mesmos clientes já estão habituados.
Em alguns casos inclusive ultrapassaram os resultados de empresas tradicionais sob diversas dimensões, como lucro, market share, valuation, etc.
Afinal, tendo esses clientes acesso a produtos e serviços de outras indústrias que oferecem experiências cada vez mais imersivas e intuitivas, como Facebook, WhatsApp, Amazon, dentre outras, é pertinente considerar por qual razão esses mesmos clientes aceitarão por muito mais tempo experiências menos ricas por parte das empresas tradicionais nos mais diversos setores de atuação.
Como uma ponderação baseada em casos reais, pode-se dizer que dinâmica do mercado atual evidencia uma evolução intrigante na competição entre empresas tradicionais e digitais.
Inicialmente, houve uma era de disruptores digitais que, por meio de inovações tecnológicas e modelos de negócios ágeis, ameaçavam e até eliminavam concorrentes tradicionais estabelecidos.
O caso clássico da Netflix e Blockbuster ilustra, mais uma vez, perfeitamente essa fase, onde a Netflix, com seu modelo baseado em streaming e algoritmos de recomendação personalizados revolucionou o setor de entretenimento doméstico e acabou levando a gigante Blockbuster à falência.
No entanto, o cenário atual mostra um capítulo diferente e fascinante dessa narrativa em que grandes corporações tradicionais, que inicialmente pareciam destinadas a serem ultrapassadas pela onda digital, estão se reinventando e adaptando suas estratégias para competir efetivamente no ambiente digital.
Estas empresas estão utilizando seus ativos tradicionais, como marca forte, base de clientes leal e experiência de mercado, e os combinando com novas tecnologias e abordagens digitais.
Um exemplo emblemático dessa tendência é a Disney, que com o seu legado centenário no entretenimento, enfrentou o desafio da era digital de frente com o lançamento do Disney+.
Este movimento não foi apenas uma expansão natural do seu portfólio de entretenimento, mas uma adaptação estratégica às preferências emergentes dos consumidores por conteúdo on-demand e experiências digitais personalizadas.
A plataforma Disney+ aproveita o vasto acervo de conteúdo da Disney, incluindo filmes clássicos, séries, e franquias populares como Star Wars e Marvel, para atrair uma base de assinantes diversificada e global.
Além disso, a Disney tem investido em tecnologia de ponta para oferecer uma experiência de usuário superior e conteúdo exclusivo, o que lhe permite competir de igual para igual com gigantes como a Netflix.
Esta nova fase do mercado mostra que a adaptação e a inovação não são exclusividade das startups digitais.
As empresas tradicionais, quando abraçam a transformação digital e utilizam seus recursos e competências únicos de forma estratégica, podem não apenas sobreviver à disrupção digital, mas também prosperar e liderar em suas indústrias.
A chave para o sucesso neste cenário em evolução é a capacidade de uma empresa de integrar suas forças tradicionais com as vantagens do mundo digital, criando um modelo de negócio resiliente e adaptável às demandas em constante mudança do mercado.
Por fim, como fechamento desse tópico, valem algumas conclusões e reflexões:
1. A tecnologia é cada vez mais essencial para a entrega e captura de valor por parte das organizações, valendo ponderar que nível de importância varia de acordo com a indústria e o driver estratégico da organização (manter, transformar, disruptar)
2. A cada dia as fronteiras entre o negócio e a tecnologia ficam mais tênues ou borradas, de forma que tecnologia passa a fazer parte das discussões e definições estratégicas de negócio, enquanto por sua vez, o negócio passa a ser, eventualmente, entregar tecnologia como produto ou serviço.
3. Nos dias atuais não importa mais se uma determinada empresa é uma “digital native” ou “tradicional incumbente”, pois "ser digital" se tornou um imperativo para a sobrevivência de todas as organizações dado que essa é a expectativa de uma parcela crescente do mercado consumidor.
4. O ritmo de evolução e transformação segue acelerado, de forma que as organizações precisam se preparar para o "the next big thing", ou seja, em um mundo onde "ser digital" está se tornando uma commodity, as empresas precisam desde já identificar qual será a próxima onda de diferenciação e se preparar para ela.